Notícias AIC
Diversidade no cinema: quais os principais desafios a serem enfrentados?
-
07 de novembro de 2023
A diversidade no cinema é uma questão que dá margem para discussões profundas. Ela passa pela representatividade de diferentes grupos sociais nas telas, criando, atuando e assistindo a tramas que apresentem ideias que dialogam com sua realidade, não visões preconcebidas e estereotipadas.
É curioso notar que o audiovisual, principalmente pelas grandes produções que atingem milhões de espectadores ao redor do mundo, tem o poder de criar padrões de comportamento. Assim, ao não incluir esses grupos de indivíduos nas obras, ele atua, mesmo que não intencionalmente, para invisibilizá-los, o que lhes tira a liberdade de expressão.
Indo além nessa discussão, a diversidade também é uma questão trabalhista. Quando o mercado cinematográfico não emprega pessoas negras, LGBT e mulheres para cargos proeminentes em produções, ele contribui para que esses profissionais desistam da profissão.
No artigo de hoje, vamos discutir a importância da diversidade no cinema, e nosso objetivo é aprofundar essa discussão tanto quanto possível. Continue a leitura e saiba o que é esse conceito, por que discuti-lo, quais são suas pautas e como seria um cinema mais inclusivo.
O que é considerado diversidade no cinema?
Inicialmente utilizado para se referir às pessoas com deficiências (PcD), o termo "diversidade" tem sido aplicado em outros contextos, nos últimos anos. Ele passou a englobar também a visibilidade de indivíduos cujo acesso a determinados bens e serviços é limitado por causa da cor de sua pele, do seu gênero ou da sua orientação sexual. É preciso levar em consideração que essas pessoas quase sempre são cerceadas do seu acesso à cultura. Mais que isso, elas não têm condições de arcar com os estudos na área que escolheram trabalhar, devido à sua situação de fragilidade socioeconômica. Visto que na maior parte dos casos isso acontece com esses indivíduos desde muito novos, não seria correto falar de "igualdade" de oportunidades, e os movimentos sociais que lutam pela diversidade preferem utilizar a palavra "equidade". Essa substituição vocabular tem um motivo: não é possível promover igualdade em um contexto em que as pessoas partem de condições desiguais. Logo, é dever da indústria e dos grupos de trabalho de cinema oferecer condições diferentes para cada indivíduo, de modo a equilibrar as oportunidades. Mais especificamente quanto às diferentes facetas das lutas pela diversidade, há várias áreas de abordagem, que são também os temas das lutas dos diferentes movimentos sociais:- diversidade étnica — no Brasil, a maior parte da população é composta por negros, no entanto, esse número não está refletido proporcionalmente no mercado de trabalho e nos cargos de liderança ocupados;
- diversidade de gênero — mulheres, mesmo as cis sexuais, recebem salários menores que os homens no cinema, a exemplo do que acontece em outros campos da sociedade, enquanto homens e mulheres transsexuais sofrem com o desemprego e o preconceito;
- diversidade sexual — gays, lésbicas e bissexuais atuam em diferentes ramos do cinema, mas são muito modestamente representados nos filmes, havendo poucos ou nenhum personagem que apresente suas vivências ou questões nos roteiros.
Qual é a importância da diversidade no cinema?
A falta de diversidade não é um problema restrito à indústria cinematográfica ou do entretenimento. Trata-se do reflexo de estruturas de preconceito que permeiam toda a sociedade. Logo, debater o tema vai bem além de questões artísticas, transformando-se em um ato político. Salários desiguais, falta de oportunidades, o abuso ou assédio sofrido por mulheres e pessoas transsexuais no mercado de trabalho são fruto de um preconceito estrutural que, como era de se esperar, é assimilado e reproduzido no mercado de cinema. Esse preconceito permeia a criação de vídeos publicitários, grandes produções hollywoodianas e filmes independentes. Até mesmo entre youtubers as oportunidades são desiguais. Então, discutir o tema é importante para criar conscientização e mobilização para a mudança desse quadro. É fundamental lembrar que os preconceitos sociais estruturais são muito mais difíceis de combater que as ações individuais. Se forem representados no roteiro de filmes e discutidos nos bastidores, esses problemas vão evoluir também em quem hoje não tem a menor ideia do que significam: boa parte do público consumidor do cinema dito "comercial". E, de novo: a inclusão envolve não apenas o acesso de pessoas aos conteúdos cinematográficos, mas também a participação em atuações e produções de filmes, de preferência em cargos importantes e proeminentes.Quais são os desafios no contexto atual?
As pautas sociais da diversidade já passaram por um desenvolvimento histórico. Algumas delas encontram-se mais desenvolvidas em determinados pontos, enquanto outras só hoje começam a conquistar o espaço que merecem. Sua aceitação também varia de país para país, de modo, por exemplo, que o cinema brasileiro já denuncia o racismo há mais de 50 anos, mas é um dos menos avançados em outros campos, como o feminismo. Vale a pena examinar mais a fundo que questões estão contidas em cada tipo de movimento e como eles todos se relacionam. Afinal, o diálogo entre todas essas lutas é fruto da necessidade mútua, mas suas reivindicações são também bem diversas.O movimento feminista
Como dissemos no início deste artigo, o cinema, pela sua capacidade de retratar situações sociais, pode atuar como um grande criador de estereótipos e padrões de comportamento. Não à toa, uma das grandes questões do feminismo no cinema é a maneira pela qual a mulher é retratada nas produções, nos moldes do Teste de Bechdel. Mas o problema vai além. Embora a indústria cinematográfica venha empregando cada vez mais mulheres, seu papel ainda é reduzido a cargos menos expressivos nos sets de filmagem. Assim, por exemplo, o número de roteiristas e diretoras é muito menor que o de homens que ocupam os mesmos cargos hoje. Da mesma forma, embora haja inúmeras personagens femininas nas obras, elas poucas vezes são escolhidas como protagonistas. Pare e pense nos seus filmes favoritos, quantos deles têm mulheres no papel principal? Na verdade, as duas questões estão relacionadas, já que para que a figura feminina possa ser representada no cinema de forma profunda e não estereotipada, nada melhor que ela mesma escrever, dirigir e interpretar esses papéis. Historicamente, a mulher sofre também com o assédio e, em alguns casos mais graves, com a violência no ambiente de trabalho — e o cinema não está imune a esses casos. Acontecimentos estarrecedores como o estupro da atriz Maria Schneider, arquitetado durante as filmagens por Marlon Brando e Bernardo Bertolucci no filme O Último Tango em Paris (1972), demonstram bem como essa violência pode ser naturalizada e ficar impune. Uma das últimas cenas do longa é uma cena de sexo entre Brando e Schneider, que foi realizada de maneira ultrarrealista sem que a atriz tivesse sido consultada a esse respeito. À época, ela contava apenas 19 anos.As questões LGBTQI+
Enquanto as mulheres aparecem nos filmes, mas não em papéis predominantes, gays, lésbicas, bissexuais, pessoas transgênero e não-binárias enfrentam, em alguns casos, situações de completa invisibilidade. Dados de 2018 da GLAAD (Gay & Lesbic Alliance Against Defamation ou Aliança de Gays e Lésbicas Contra a Difamação) dão conta de que, no ano de 2018, apenas 20 dos 110 filmes distribuídos pelos estúdios americanos davam espaço a personagens LGBT em seus roteiros. Modestos 12% do total. Com relação aos personagens transgênero (que engloba travestis, transsexuais, cross dressers, drag queens e outras categorias não-binárias), os dados são ainda mais desanimadores. Absolutamente nenhum personagem trans apareceu nos filmes, naquele ano. A presença de gays, lésbicas e pessoas trans em obras comerciais é um termômetro importante para medir o avanço das questões LGBTQI+ no cinema e na sociedade. Ela permite que a vida, os gostos pessoais e o comportamento dessas pessoas sejam naturalizados, e os indivíduos melhor aceitos por parcelas mais conservadoras da sociedade. Além disso, questões de gênero são bandeiras não apenas artísticas e sociais, mas também políticas e judiciais. A população LGBT, especialmente as pessoas trans, sofrem com a violência nas ruas, e há dados que comprovam que o número de assassinatos entre esses grupos de indivíduos é muito maior que entre outras organizações sociais.O movimento negro
Antes de falar do racismo estrutural no cinema mundial, vamos observar o caso do Brasil. Se, por um lado, uma parte do cinema nacional se apropriou e reforçou o mito da democracia racial — falso pressuposto de que as raças convivem harmonicamente no país, em parte devido à miscigenação da nossa população — ele também teve notada atuação histórica a favor do povo negro. As temáticas da escravidão, marginalização, aglomeração em favelas e invisibilidade nos meios de comunicação contrastou com algumas ótimas contribuições de diretores brasileiros, como fez Anselmo Duarte ao adaptar a obra O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, para o cinema, em 1962. Seja como for, Anselmo era um diretor branco falando sobre a temática negra, e a participação dos negros nas nossas obras como atores ou realizadores é muito reduzida, número que chama ainda mais atenção quando consideramos que eles são a maioria da população do país (55%). Em estudo de 2016, a ANCINE publicou um documento da Coordenação de Monitoramento de Cinema demonstrando que, naquele ano, nada menos que 97% dos filmes brasileiros foram dirigidos por pessoas brancas. As mulheres que respondiam pela direção atingiam 19,7% do total, a maior parte delas no comando de documentários. Embora o estudo não revele tal número, vale a pena refletir sobre o quão ínfima foi a representatividade da mulher negra no cinema daquele ano. A população negra brasileira, historicamente mais pobre em decorrência da sua exploração durante e depois dos séculos de escravidão, tem poucas condições de estudar cinema. Para a maior parte dessas pessoas, é melhor apostar em profissões com investimento mais baixo e retorno mais rápido.De que forma é possível um cinema crítico e inclusivo?
Se o cinema conseguir abrir espaço para produções mais inclusivas e diversas, as consequências vão ser muito positivas: obras mais críticas e que promovem um pensamento social mais agudo, como se espera do cinema e de todas as artes. No entanto, contemplar a diversidade é muito mais do que afinar o discurso com seus argumentos. É necessário criar situações reais para que os grupos vulneráveis se sintam amparados e incentivados a estudar e praticar cinema. Essas situações dependem de políticas públicas e privadas para garantir acesso e diversidades. Em outras palavras, inclusão e diversidade devem ser políticas de Estado que atraiam, cooptem e incentivem atuações individuais nessas causas. Um grande passo tem sido dado com a criação de festivais e prêmios nacionais e internacionais voltados a temáticas específicas, como acontece com o FanCineGay e o ForRainbow, por exemplo. Mostras e premiações do cinema negro vão na mesma linha: o Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE) é um exemplo. Podemos citar, também, o FEMINA (Festival Internacional de Cinema Feminino) e o FIMCINE (Festival de Mulheres no Cinema) como grandes defensores do fim do machismo estrutural na indústria cinematográfica e o apoio às profissionais independentes. No entanto, esses incentivos ainda são desconhecidos do grande público, além de contarem com orçamentos modestos. Uma cadeia produtiva forte e livre de preconceitos nas diversas áreas cinematográficas se constrói não apenas com festivais, mas com incentivos em todos os seus elos. Escolas, cursos de formação em cinema, faculdades, agências publicitárias e produtoras precisam de ações conjuntas e organizadas nesse sentido. Quando isso acontecer, teremos os alicerces de uma estrutura significativamente forte para promover a arte de todos, sem invisibilidade, preconceitos ou estereótipos. Na Academia Internacional de Cinema, realizamos um processo seletivo anual, em que selecionamos várias pessoas para estudarem cinema com bolsas integrais e parciais. Já chegamos ao número de 600 inscritos. Com isso, os dramas e situações vividas pelas mulheres, negras e negros, LGBTs e outros grupos vulneráveis social e economicamente vão ser divulgados, examinados, comentados e discutidos em campos da nossa sociedade em que isso não ocorre hoje. E o cinema — arte política por excelência, mesmo quando falamos dos circuitos comerciais —, vai cumprir sua função de ampliar os horizontes de pensamento do público, promovendo diversidade e entretenimento mais edificante e político. A arte sendo utilizada no seu sentido pleno. E já que falamos sobre as produções nacionais em diversos pontos deste artigo, que tal baixar nosso material sobre o cinema brasileiro? Nele, explicamos as correntes mais importantes e falamos sobre diferentes diretores, atores e produções!
Receba em primeira mão
As novidades do universo do audiovisual
As novidades do universo do audiovisual
Nossos leitores recebem novidades e notícias do mercado, eventos e promoções exclusivas